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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

BLOGANDO SOBRE A INTERDIÇÃO DO DESEJO FEMININO

BONDES DE SANGUE DE TANTAS SENHORITAS: A TRAGÉDIA DO DESEJO CEIFADO

Sob perspectivas comparatistas “Senhorita Júlia” de Strindberg, “Um bonde chamado Desejo” de Tenessee Williams  e “Bodas de Sangue” de Federico Garcia Lorca são obras que abordam um  universo feminino permeado de clausuras, de preconceitos que violentam a figura da mulher, de uma constante situação de solidão, de loucura, de desejos cerceados.
Que mulheres são estas que tiveram  seus destinos  marcados pelo sofrimento, solidão e moral  enxovalhada? O que une tais mulheres? Como elas dialogam com a figura feminina contemporânea? Como resgatar, na educação atual, um conceito de valoração que a grande e avassaladora maioria desconhece a existência e o direito que possui em relação ao mesmo? Parece-lhes  natural que o feminino seja relegado a submissão, uma vez que os mecanismos religiosos, que talvez sejam os mais contundentes, incisivos e críveis, endossam tal ideia de segundo plano para o sexo, pejorativamente, chamado de frágil e que se encontra inserido em um universo de costelas mágicas e maçãs mirabolantes, de mulheres que serpenteiam os inocentes Adãos, presentes nas salas de aula, nas empresas,  nos veículos de comunicação, no congresso nacional e demais segmentos da nossa sociedade.
Comecemos por Júlia que, em um espaço rural, tendo uma educação confusa, oriunda de uma mãe já insatisfeita com o domínio e tirania exercidas pelo marido, trilha por um caminho que, para ela, não terá retorno. Nesta educação  os papeis se invertem na sua família e Júlia acaba por desempenhar tarefas que, naquele contexto histórico, eram essencialmente masculinas,  torna-se “meio homem e meio mulher”, menina que foi talhada para provar que a figura feminina vale  tanto quanto um homem, mas não foi ensinada a lidar com o próprio desejo e tem a infelicidade de não conseguir assimilar que atração física e cumplicidade de ideias, afeto, são coisas distintas. Rende-se a atração que sente pelo criado e com ele transita de opressora a oprimida, fica fragilizada diante da sexualidade provavelmente desconhecida até então,  passa pelo processo de perda de uma autoridade  de patroa, senhora e torna-se serva, descobrindo-se, por fim, alguém com a necessidade de receber ordens, reflexo oriundo de ideias que ainda tangenciam o inconsciente coletivo. Não sabendo como reagir às consequências de uma ação que, para a época, era  transgressora acaba por suicidar-se. A morte é a libertação para uma alma singela, portadora de um sofrimento psíquico, alma esta que se sentia tão engaiolada como seu pássaro de estimação, bicho que representava a fidelidade e Júlia, coerente com o próprio conceito de fidelidade, prefere que o animal  morra a ter de traí-lo com o abandono. Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que, para a protagonista, fidelidade é um princípio inviolável entre seres que se amam.
A personagem criada por Lorca em Bodas de Sangue, chamada apenas de Noiva passa pelo conflito entre o desejo e a razão. Não planeja fugir com Leonardo, mas sucumbe aos desejos da carne. Ele é a semente da terra dela. É uma mulher que, como Júlia, transgride, pois no dia de seu casamento acaba fugindo com Leonardo, dando vazão ao seu lado mais instintivo “uma cadela, é o que sou...uma cadela”. Também transita entre os universos de oprimida e opressora. Não se suicida como Júlia, não enlouquece como Blanche, mas fica com a imagem denegrida, enxovalhada e provavelmente carregará a culpa pela morte de dois homens, por não ter conseguido coibir seu desejo ( Neste quesito sua história estabelece contato com a trajetória  de Blanche ).
A tragédia de Blanche, seu sofrimento psíquico, tem início com o frustrante casamento com um homossexual, não consegue satisfazê-lo, não consegue satisfazer-se, extravasa sua mágoa e diz ao marido, após surpreendê-lo na intimidade com um senhor e antigo amigo, o quanto o despreza. O rapaz se suicida e ela carrega a culpa. Na busca incessante por proteção e carinho prostitui-se, envolve-se com um aluno seu de dezessete anos, é demitida, acaba perdendo a propriedade rural que era também de sua irmã. Rechaçada por seu comportamento, busca abrigo na casa de Stela, sua irmã.
Blanche, de  natureza sensível e perturbada, não consegue encarar uma vida rude, cria uma realidade paralela, começa a causar constrangimentos na casa do cunhado. Também eles, como Júlia e o criado, oscilam entre os papéis de opressor e oprimido. Seriam os  inúmeros banhos de Blanche uma tentativa de limpar-se do passado de inúmeras peripécias sexuais? Seria a constante atitude de manter-se na penumbra uma estratégia para esconder a idade ou um não querer ver o mundo como ele é, com todas as suas rudezas? É aquela mulher que de tão forte, experiente acaba sendo vítima de sua própria fragilidade. Não quer a realidade, quer a magia, não diz a verdade, diz o que deveria ser verdade.
A protagonista é uma mulher que amou um homem feminino e subtende-se que tenha tido uma atração pelo cunhado rude e tosco e tal sensação pode ter-lhe causado uma repugnância, ( sentir atração pelo cunhado  é fato que a coloca, juntamente com Stanley, em patamar de grande dialogicidade com personagens de Nélson Rodrigues). Violada pelo marido da irmã,  opta por viver em um mundo a parte. É internada, tida como louca, e sai da vida dos familiares com a mesma elegância com que entrou, mas com a consciência de que “sempre dependeu da bondade de estranhos”, o que  nos remete a uma leitura de que é solitária, não pode contar com a família. Sua  tentativa constante de buscar proteção dialoga com a necessidade de receber ordens, percebida em Júlia, personagem de Strindberg, e o projeto de construir uma família com Mitch, amigo de Stanley, foi destruído pelo próprio Stanley, num  provável ato de vingança, pois teria sido bem mais fácil para todos se o passado de Blanche não tivesse sido denunciado, exposto.
Blanche,  mulher que se percebe sozinha e sem o padrão de vida de outrora, tão singela e tão transgressora como Júlia, não menos aviltada em sua moral como a Noiva de Bodas de Sangue.
 O grande ponto de contato entre estas três mulheres foi não terem tido habilidade e conhecimento para lidarem com seus desejos, com o próprio corpo, com sua sexualidade, uma vez que eram  vítimas de um existir pautado no machismo cruel e aviltante que imperava na época.
Todas oriundas de um universo rural, mundo este essencialmente masculino, onde ser mulher e experienciar a plenitude sexual era e ainda é um crime imperdoável.
            Até que ponto Blanches e Júlias e Noivas não existem mais? Até que ponto a mulher contemporânea tem os seus direitos respeitados  e será mesmo que o discurso de defesa do direito da mulher não mais se faz necessário?
De lá para cá, parece-me que as coisas não mudaram tanto assim. Vivemos em um mundo onde os valores preservados são beleza, saúde e juventude. O que era para ser liberdade virou escravidão disfarçada, camuflada, endossada e passível de escambo,  virou mercadoria barata. A mulher continua “coisificada”: coisificada no mercado de trabalho, no seu serviço, quando não cede a eventuais assédios, coisificada quando exerce a mesma função que o homem e recebe menos por isso, coisificada quando se recusa a fazer parte da grande leva de bajuladores que faz questão de estar sempre “ ao lado do rei” para não perder privilégios e para tanto emite voz mansa e rende “manifestações de apreço ao senhor diretor”, coisificada no seu direito de escolha, coisificada na mídia, coisificada nas bancas e quiosques, coisificada no seu direito de exercer a própria solidão, coisificada quando diz sim, coisificada quando diz não.
Após ter falado de Júlia, da Noiva e de Blanche podemos encerrar este pequeno colóquio com algumas personagens modernas, aquelas que farão parte do universo de quem pretende aventurar-se na difícil, penosa e não menos instigante tarefa de educar: as pequenas Geises, as pequenas meninas frutas, seus universos restritos, seus sonhos, suas ambições e aquilo que o sistema está lhes oferecendo. Bem... Posso falar com toda a propriedade: O que era oferecido nas bancas e quiosques que permearam minha meninice? Notícias de revistas muito mais coloridas, bonitas e bem mais baratas do que um livro. E eu pergunto: você que está me lendo, já leu James Joyce, Herman Melville,  Dante Alighiere, José Saramago, Fedor Dostoiévski, Monteiro Lobato? Bem... Talvez não tenhamos lido  Madame Bovary de Gustave Flaubert, O Primo Basílio de Eça de Queirós e, imperdoavelmente, é possível que desconheçamos O segundo Sexo de Simone de Beauvoir e talvez não tenhamos ouvido falar na não menos compreensível rebeldia da primeira esposa de Adão. Bem... se não fosse o ateísmo algo tão forte na minha constituição diria que talvez  Lilith e Lúcifer tenham sido anjos incompreendidos que questionaram o machismo e o autoritarismo de deus, respectivamente.
 Então vamos começar por algo menos filosófico e mais presente nas nossas vidas?  Tenho certeza que você já leu algo semelhante em algum lugar... Ou pelo menos parte de uma barata revista feminina, incitando o culto ao corpo como fonte de sucesso e satisfação dos desejos... Femininos ou masculinos?
Agora com apenas R$1, 49  a grande maioria das feiosas, gorduchas e sonhadoras podem, pelo menos, conhecer a vida maravilhosa e glamorosa das mulheres das capas de revistas e o que essas mulheres  fazem para ficarem turbinadas e gostosas, mas é necessário salientar que beleza implica demandas como acessórios chiques a partir de R$ 5,90. Depois de ficarem gostosas poderão ler a sessão que conta as 8 posições que os homens mais gostam na cama, afinal o macho predador da espécie humana evoluiu, ele não quer somente a beleza vendida na capa da revista, é preciso mais, é preciso conteúdo, inteligência, uma inteligência sexual, é claro, fartas doses de criatividade, não basta “papai-mamãe”, “69”, “y duplo”, “canguru perneta”, “sexo anal, oral. vaginal e transversal”, “cachorrinha”, “cavalinho”, “escorregador”, “tobogã” ... é preciso mais, é preciso “chicote, algema e cinta-liga”, a mulher moderna tem de  ser carinhosa, violenta e independente, preparada física e emocionalmente, afinal vivemos em uma sociedade em que os valores preservados são beleza, saúde e juventude. E, vamos combinar, é muito fácil ser bonita... é só comprar a revista e seguir direitinho tudo o que ela ensina: 11 pílulas que turbinam a beleza, que acabam com celulite, espinhas, manchas e flacidez, como perder 5kg em 10 dias, como eliminar a fome e a barriga, o iogurte mágico com lactobacilos vivos, a granola e barrinhas de cereal.
Depois de ler a revista, como Blanche, senti falta de acreditar em magia. Seria tão mais simples se eu fosse ao banheiro, ficasse nua  e olhasse para a minha barriga e gritasse: sai barriga, “este corpo não te pertence...”  Sonho, apenas sonho e estou longe de me chamar Calderon. Decididamente... A vida não é sonho... Para a grande maioria é um pesadelo com o qual já se acostumou.
Comecei a me sentir a mulher mais rica do mundo quando meu pai comprou um chuveiro ( frio ) e uma televisão... Eu era menina ( e isso não faz muito tempo). É incrível como o tempo custa a passar para pessoas alegres, simpáticas, extrovertidas, “modestas”, e queridas ( como eu), que fazem de suas tragédias pessoais uma ponte para a grande comédia do autoconhecimento)... Onde parei mesmo? Ah... Quando menina eu assistia  ao programa PLANETAS DOS HOMENS,  que todos conhecem,  porque, insisto, não faz tanto tempo assim...  Então, havia uma imagem que nunca me saiu da memória: um macaco descascando uma banana e, de dentro, saía uma linda mulher e tudo que eu mais desejava era ser a mulher que saía de dentro da casca da banana. Eu buscava em todas as revistas mecanismos que me tornassem bela como a moça que saia de dentro da casca banana. Era a nossa primeira televisão... A televisão era a maneira que aquela menina (que , insisto, sou eu... ) encontrava de sonhar com um mundo diferente onde não figurassem tantos exemplos que  não queria que fizessem parte do seu universo. As coisas se confundiam na minha infeliz cabecinha: ora eu queria ser religiosa para acabar com a pobreza dos que ainda eram mais pobres do que a gente  e ora eu queria ser a moça que saía de dentro da casca da banana.
É preciso que se compreenda  que nossas meninas menos privilegiadas economicamente, ou melhor desprivilegiadas mesmo, não têm muitas escolhas. Suas vidas, seus universos são limitados, estão muito ligados às suas trajetórias e como elas estão se constituindo. As bancas de revistas não enchem os olhos de nossa infância sacrificada com literatura de qualidade e, na falta do que é bom, a necessidade de ser igual aos que são bonitos e bem sucedidos faz com que se adquira algo desnecessário.   Podemos criticar estas meninas? Criticá-las seria estar negando o meu passado. O que é possível  fazer é oferecer-lhes outras possibilidades.
Não sei como, nem por qual razão acabei me distanciando deste mercado de ilusões, mas de algo tenho certeza: ridicularizar quem lê,  não é o melhor caminho.
Como arte-educadores precisamos saber que pequenas Geises, melancias, morangos, melões são pequenas Blanches, Noiva ou Júlias  a serem despertadas por mãos responsáveis, que medeiem, proponham, apresentem novos caminhos, novas possibilidades para que surja uma  nova mulher, consciente de seu valor social e de sua importância, que não se deixe usar, que se faça respeitar, que receba o justo e merecido reconhecimento, na família, no mercado de trabalho, que não esteja abaixo de, nem acima de, mas ao lado de novos homens que se permitam vivenciar o prazer da igualdade.