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quinta-feira, 17 de abril de 2014

ENDOSSAMENTO DA BUNDALIZAÇÃO

Agora com apenas R$1, 49 a grande maioria das feiosas, gorduchas e sonhadoras podem, pelo menos, conhecer a vida maravilhosa e glamorosa das mulheres das capas de revistas e o que essas mulheres fazem para ficarem turbinadas e gostosas, mas é necessário salientar que beleza implica demandas como acessórios chiques a partir de R$ 5,90. Depois de ficarem gostosas poderão ler a sessão que conta as 8 posições que os homens mais gostam na cama, afinal o macho predador da espécie humana evoluiu, ele não quer somente a beleza vendida na capa da revista, é preciso mais, é preciso conteúdo, inteligência, uma inteligência sexual, é claro, fartas doses de criatividade, não basta “papai-mamãe”, “69”, “y duplo”, “canguru perneta”, “sexo anal, oral. vaginal e transversal”, “cachorrinha”, “cavalinho”, “escorregador”, “tobogã” ... é preciso mais, é preciso “chicote, algema e cinta-liga”, a mulher moderna tem de ser carinhosa, violenta e independente, preparada física e emocionalmente, afinal vivemos em uma sociedade em que os valores preservados são beleza, saúde e juventude. E, vamos combinar, é muito fácil ser bonita... é só comprar a revista e seguir direitinho tudo o que ela ensina: 11 pílulas que turbinam a beleza, que acabam com celulite, espinhas, manchas e flacidez, como perder 5kg em 10 dias, como eliminar a fome e a barriga, o iogurte mágico com lactobacilos vivos, a granola e barrinhas de cereal. Depois de ler a revista senti falta de acreditar em magia. Seria tão mais simples se eu fosse ao banheiro, ficasse nua e olhasse para a minha barriga e gritasse: sai barriga, “este corpo não te pertence...” Sonho, apenas sonho e estou longe de me chamar Calderon. Decididamente... A vida não é sonho... Para a grande maioria é um pesadelo com o qual já se acostumou. Comecei a me sentir a mulher mais rica do mundo quando meu pai comprou um chuveiro ( frio ) e uma televisão... Eu era menina ( e isso não faz muito tempo). É incrível como o tempo custa a passar para pessoas alegres, simpáticas, extrovertidas, “modestas”, e queridas ( como eu), que fazem de suas tragédias pessoais uma ponte para a grande comédia do autoconhecimento)... Onde parei mesmo? Ah... Quando menina eu assistia ao programa PLANETAS DOS HOMENS, que todos conhecem, porque, insisto, não faz tanto tempo assim... Então, havia uma imagem que nunca me saiu da memória: um macaco descascando uma banana e, de dentro, saía uma linda mulher e tudo que eu mais desejava era ser a mulher que saía de dentro da casca da banana. Eu buscava em todas as revistas mecanismos que me tornassem bela como a moça que saia de dentro da casca banana. Era a nossa primeira televisão... A televisão era a maneira que aquela menina (que , insisto, sou eu... ) encontrava de sonhar com um mundo diferente onde não figurassem tantos exemplos que não queria que fizessem parte do seu universo. As coisas se confundiam na minha infeliz cabecinha: ora eu queria ser religiosa para acabar com a pobreza dos que ainda eram mais pobres do que a gente e ora eu queria ser a moça que saía de dentro da casca da banana. É preciso que se compreenda que nossas meninas menos privilegiadas economicamente, ou melhor desprivilegiadas mesmo, não têm muitas escolhas. Suas vidas, seus universos são limitados, estão muito ligados às suas trajetórias e como elas estão se constituindo. As bancas de revistas não enchem os olhos de nossa infância sacrificada com literatura de qualidade e, na falta do que é bom, a necessidade de ser igual aos que são bonitos e bem sucedidos faz com que se adquira algo desnecessário. Podemos criticar estas meninas? Criticá-las seria estar negando o meu passado. O que é possível fazer é oferecer-lhes outras possibilidades. Não sei como, nem por qual razão acabei me distanciando deste mercado de ilusões, mas de algo tenho certeza: ridicularizar quem lê, não é o melhor caminho. Como arte-educadores precisamos saber que pequenas Geises, melancias, morangos, melões são pequenas Blanches, Noiva ou Júlias a serem despertadas por mãos responsáveis, que medeiem, proponham, apresentem novos caminhos, novas possibilidades para que surja uma nova mulher, consciente de seu valor social e de sua importância, que não se deixe usar, que se faça respeitar, que receba o justo e merecido reconhecimento, na família, no mercado de trabalho, que não esteja abaixo de, nem acima de, mas ao lado de novos homens que se permitam vivenciar o prazer da igualdade.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

BLOGANDO SOBRE AS LINHAS DE ELISE

LINHAS DE AMOR SEM COLEIRAS PARA ELISE

Tendo como fonte de inspiração a peça Por Elise, com texto de Grace Passô , Mariana Lohmann, do grupo Santa Mariense Entrelinhas Cia de Teatro, adaptou e dirigiu o espetáculo As linhas de Elise que foi apresentado domingo, 19/06/20011 no Centro de Treinamento Tholl, situado na Rua Garibaldi, 630.
Pour Elise é o nome da composição de Beethoven feita , supostamente, para uma grande mulher, uma amiga, porém, a tradução tanto no português como no francês , é delicada, forte, suave e é exatamente esta suavidade que aparece na relação de uma menina mulher com o seu cão, não menos suave o contato desta com o lixeiro. Assim se constitui o espetáculo que fala constantemente de amor, de amizade (que não se restringe somente aos humanos). Como falar de amor e de amizade, de galinhas e de cães sem sermos suaves e delicados?
Pautando-se nas vertentes de um teatro físico, a trupe traz à cena muita mobilidade, representando a rapidez, a pressa do mundo contemporâneo que acaba inviabilizando as relações humanas, tornando-as ameaçadoras, pouco dignas de confiança colocando os seres humanos como eternos andarilhos, sempre de malas prontas para sair da vida das pessoas.
Elise conta as histórias de seus vizinhos ( uma mulher, um homem, um operário, um cão doente, prestes a ser recolhido por alguém que ganha a vida com a morte dos cachorros) porque não consegue contar a sua própria história, está encoleirada, tem medo de se envolver, se acha uma fortaleza, uma muralha e, por fim, acaba se desarmando.

O figurino remete ao pitoresco, investe no xadrez para bem poder fazer referências aos piqueniques e às imagens da infância. As projeções de um trem, de casas, de ruas movimentadas com lixeiros fazendo o seu trabalho nos mostram a fragilidade da vida moderna, com tão pouco espaço, para que as pessoas se conheçam e, por fim, uma borboleta saindo do casulo, a transformação, fato importante nas nossas vidas.
Valendo-se de metáforas, o texto aborda questões que são inerentes à maioria dos seres humanos, como por exemplo verdades que Elise, a contadora de história , nos revela: não adianta dizer que a gente não sente... a gente sente tudo. nós nos envolvemos, mesmo quando não queremos nos envolver, fato que fez com que eu, enquanto expectadora, me reportasse ao ano de 2004, quando adotei uma cadelinha a fim de esquecer um grande amor. Irritada com o fato de o bichinho espalhar pêlos por toda a casa, deixei-a na casa de minha mãe. Adoeci, tive febre, depressão, sentia falta daquele bicho peludo pulando pela casa e sempre nos meus pés me fazendo tropeçar. Meu grande amor nunca havia pulado em cima de mim, não havia rasgado minha meia nova, também não havia destruído um travesseiro para chamar a minha atenção, tampouco havia roubado o meu lanche e ironicamente, quando estava triste... ele nunca havia lambido as minhas lágrimas. A casa ficou tão grande, tão limpa, tão organizada, tão silenciosa e... tão vazia. Quando fui buscá-la , a cachorrinha, no mesmo momento em que cheguei, simplesmente deixou de obedecer minha mãe, mesmo diante de prêmios como salsichas e linguiça. Só atendia aos meus comandos. Magoada, mamãe alegou que era uma cadela ingrata e cínica. Eu aprendi a amar os cães. Minha mãe aprendeu a amar os cães. Meu sobrinho surpreendeu a família adotando uma simpática srd. Muitas vidas se transformaram só porque eu fui dispensada por um humano.
Histórias pessoais a parte, a encenação permite a leitura de que não somos superiores aos supostos irracionais como, pretensiosamente, cremos ser. Semelhante a um dos personagens, colocamos armaduras para enfrentar os animais e não nos resguardamos de humanos que têm permissão de sair às ruas livremente, sem focinheira. Nunca conhecemos verdadeiramente um humano, mas quando somos capazes de abrir mão de um tesouro não tão valioso como uma meia nova, aí então estamos nos permitindo conhecer a verdadeira amizade e, quem sabe, compartilhá-la com outros humanos.

Os poucos detalhes desnecessários da encenação, como o fato de trazer alguns exercícios mecânicos e sem propósito à cena (talvez resquícios da academia) , ou o uso desnecessário e desrespeitoso das galinhas, não tiraram a beleza e a sutileza do prazer de falar de amor e amizade com que nos brindou o espetáculo Linhas para Elise, que bem poderia ser Linhas sem coleiras, nem amarras para Elise.
Assim então poderemos nos sentir fortes como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar ... e é assim que ficamos quando temos por amigos seres peludos de quatro patas, com focinhos gelados e umedecidos.

sábado, 30 de abril de 2011

BLOGANDO ACERCA DE NOVE MENTIRAS SOBRE A VERDADE.

DAS NOVE MENTIRAS, A ÚNICA VERDADE É A SITUAÇÃO DE INVISIBILIDADE DO DITO SEXO FRÁGIL
Com direção de Gilson Vargas, texto de Diones Camargo, encenado e coproduzido por Vanise Carneiro, o texto 9 Mentiras Sobre a Verdade traz ao palco, a história de uma dona de casa que, talvez, devido a insatisfação com sua vida, fantasia que é protagonista de filmes famosos e passa tal ideia para as pessoas. Em uma reunião para mentirosos compulsivos ela começa a descobrir a linha tênue entre a fantasia e a realidade, seu complexo de Eléctra, sua condição de mulher invisível. O caráter psicológico do texto de Diones Camargo se evidencia através da apresentação de uma personagem com o comportamento compulsivo de alguém que cria um universo paralelo fugindo assim de uma existência quase imperceptível para aqueles com os quais a mesma convive. Provavelmente entre as nove ou mais bravatas proferidas por Lara, a única grande verdade seja a situação de invisibilidade que o universo contemporâneo ainda oferece à figura feminina, quase sempre tão impedida de ser reconhecida, valorizada, estimada, afinal ser mulher, ter cérebro, fazer uso do mesmo não é algo muito apreciado por grande parcela de nossa sociedade que cria uma infinidade de ardis para solapar a autoestima e valoração da figura feminina que ousa se destacar num mundo onde até a gramática é masculina. A situação de circularidade do texto parece ser usada para ressaltar questões fulcrais e norteadoras da sua condição de mentirosa compulsiva.
No final há a ruptura com a fantasia vivida pela personagem e esta retoma a sua realidade se impondo ao meio em que vive, dando um basta à tirania da invisibilidade. Fazer uso do cinzeiro, deixar claro que voltou a fumar é a metáfora da rejeição do soutién, é mostrar o peito, é dizer que não está mais invisível, apática, submissa, talvez quieta, esperando o momento certo de agir, mas jamais aceitando o papel de figurante que não dá o direito a voz.
O espetáculo faz uso de diversos recursos sonoros e visuais, os quais, além de tornar os momentos cênicos mais ricos e aprazíveis à plateia (projeções, gravações, entre outros), atuam como facilitadores da compreensão da montagem. A iluminação, concebida por Fernando Ochoa, estabelece uma espécie de costura entre uma cena e outra, fato que ressalta a interpretação responsável de Vanise Carneiro. A atriz brinca com o universo cinematográfico, permeia a plateia de dúvidas sobre o que é ficção e o que é realidade, faz um uso constante de símbolos, trabalha o teatro dentro do teatro atribui significados inteligentes ao figurino, nada do que a mesma usa fica sem um sentido, aguçando assim a imaginação do espectador. É interessante o jogo de interação proposto à plateia, embora paire a dúvida se há realmente um desejo de que esta tome parte do espetáculo pois, ao mesmo tempo que o espectador é instigado a dar a sua participação, há uma velada coibição de que este se manifeste que se revela no desvio do olhar quando não se quer uma resposta, ou seja, só participa quem através de uma provocativa e insistente mirada é convidado a responder alguma questão; talvez tal jogo tenha tornado a atuação um pouco monótona e não convincente em alguns momentos.
Nove mentiras sobre a verdade, apresenta uma linguagem contemporânea, como opção estética um palco quase nu, traz à cena uma atriz madura e um texto rico, com possibilidades de infinitas leituras e significados. Em todo o conjunto da montagem podemos observar uma direção experiente, que, embora tenha feito uma escolha pautada bem mais no textocentrismo do que na fisicalidade, realiza reflexões bastante pertinentes ao modo de vida da mulher moderna, suas inquietações, receios e desejos. É um espetáculo que vale a pena ser assistido, reassistido pelo seu conteúdo, forma e abordagem escolhidos e utilizados.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

BLOGANDO SOBRE A INTERDIÇÃO DO DESEJO FEMININO

BONDES DE SANGUE DE TANTAS SENHORITAS: A TRAGÉDIA DO DESEJO CEIFADO

Sob perspectivas comparatistas “Senhorita Júlia” de Strindberg, “Um bonde chamado Desejo” de Tenessee Williams  e “Bodas de Sangue” de Federico Garcia Lorca são obras que abordam um  universo feminino permeado de clausuras, de preconceitos que violentam a figura da mulher, de uma constante situação de solidão, de loucura, de desejos cerceados.
Que mulheres são estas que tiveram  seus destinos  marcados pelo sofrimento, solidão e moral  enxovalhada? O que une tais mulheres? Como elas dialogam com a figura feminina contemporânea? Como resgatar, na educação atual, um conceito de valoração que a grande e avassaladora maioria desconhece a existência e o direito que possui em relação ao mesmo? Parece-lhes  natural que o feminino seja relegado a submissão, uma vez que os mecanismos religiosos, que talvez sejam os mais contundentes, incisivos e críveis, endossam tal ideia de segundo plano para o sexo, pejorativamente, chamado de frágil e que se encontra inserido em um universo de costelas mágicas e maçãs mirabolantes, de mulheres que serpenteiam os inocentes Adãos, presentes nas salas de aula, nas empresas,  nos veículos de comunicação, no congresso nacional e demais segmentos da nossa sociedade.
Comecemos por Júlia que, em um espaço rural, tendo uma educação confusa, oriunda de uma mãe já insatisfeita com o domínio e tirania exercidas pelo marido, trilha por um caminho que, para ela, não terá retorno. Nesta educação  os papeis se invertem na sua família e Júlia acaba por desempenhar tarefas que, naquele contexto histórico, eram essencialmente masculinas,  torna-se “meio homem e meio mulher”, menina que foi talhada para provar que a figura feminina vale  tanto quanto um homem, mas não foi ensinada a lidar com o próprio desejo e tem a infelicidade de não conseguir assimilar que atração física e cumplicidade de ideias, afeto, são coisas distintas. Rende-se a atração que sente pelo criado e com ele transita de opressora a oprimida, fica fragilizada diante da sexualidade provavelmente desconhecida até então,  passa pelo processo de perda de uma autoridade  de patroa, senhora e torna-se serva, descobrindo-se, por fim, alguém com a necessidade de receber ordens, reflexo oriundo de ideias que ainda tangenciam o inconsciente coletivo. Não sabendo como reagir às consequências de uma ação que, para a época, era  transgressora acaba por suicidar-se. A morte é a libertação para uma alma singela, portadora de um sofrimento psíquico, alma esta que se sentia tão engaiolada como seu pássaro de estimação, bicho que representava a fidelidade e Júlia, coerente com o próprio conceito de fidelidade, prefere que o animal  morra a ter de traí-lo com o abandono. Podemos dizer, sem sombra de dúvida, que, para a protagonista, fidelidade é um princípio inviolável entre seres que se amam.
A personagem criada por Lorca em Bodas de Sangue, chamada apenas de Noiva passa pelo conflito entre o desejo e a razão. Não planeja fugir com Leonardo, mas sucumbe aos desejos da carne. Ele é a semente da terra dela. É uma mulher que, como Júlia, transgride, pois no dia de seu casamento acaba fugindo com Leonardo, dando vazão ao seu lado mais instintivo “uma cadela, é o que sou...uma cadela”. Também transita entre os universos de oprimida e opressora. Não se suicida como Júlia, não enlouquece como Blanche, mas fica com a imagem denegrida, enxovalhada e provavelmente carregará a culpa pela morte de dois homens, por não ter conseguido coibir seu desejo ( Neste quesito sua história estabelece contato com a trajetória  de Blanche ).
A tragédia de Blanche, seu sofrimento psíquico, tem início com o frustrante casamento com um homossexual, não consegue satisfazê-lo, não consegue satisfazer-se, extravasa sua mágoa e diz ao marido, após surpreendê-lo na intimidade com um senhor e antigo amigo, o quanto o despreza. O rapaz se suicida e ela carrega a culpa. Na busca incessante por proteção e carinho prostitui-se, envolve-se com um aluno seu de dezessete anos, é demitida, acaba perdendo a propriedade rural que era também de sua irmã. Rechaçada por seu comportamento, busca abrigo na casa de Stela, sua irmã.
Blanche, de  natureza sensível e perturbada, não consegue encarar uma vida rude, cria uma realidade paralela, começa a causar constrangimentos na casa do cunhado. Também eles, como Júlia e o criado, oscilam entre os papéis de opressor e oprimido. Seriam os  inúmeros banhos de Blanche uma tentativa de limpar-se do passado de inúmeras peripécias sexuais? Seria a constante atitude de manter-se na penumbra uma estratégia para esconder a idade ou um não querer ver o mundo como ele é, com todas as suas rudezas? É aquela mulher que de tão forte, experiente acaba sendo vítima de sua própria fragilidade. Não quer a realidade, quer a magia, não diz a verdade, diz o que deveria ser verdade.
A protagonista é uma mulher que amou um homem feminino e subtende-se que tenha tido uma atração pelo cunhado rude e tosco e tal sensação pode ter-lhe causado uma repugnância, ( sentir atração pelo cunhado  é fato que a coloca, juntamente com Stanley, em patamar de grande dialogicidade com personagens de Nélson Rodrigues). Violada pelo marido da irmã,  opta por viver em um mundo a parte. É internada, tida como louca, e sai da vida dos familiares com a mesma elegância com que entrou, mas com a consciência de que “sempre dependeu da bondade de estranhos”, o que  nos remete a uma leitura de que é solitária, não pode contar com a família. Sua  tentativa constante de buscar proteção dialoga com a necessidade de receber ordens, percebida em Júlia, personagem de Strindberg, e o projeto de construir uma família com Mitch, amigo de Stanley, foi destruído pelo próprio Stanley, num  provável ato de vingança, pois teria sido bem mais fácil para todos se o passado de Blanche não tivesse sido denunciado, exposto.
Blanche,  mulher que se percebe sozinha e sem o padrão de vida de outrora, tão singela e tão transgressora como Júlia, não menos aviltada em sua moral como a Noiva de Bodas de Sangue.
 O grande ponto de contato entre estas três mulheres foi não terem tido habilidade e conhecimento para lidarem com seus desejos, com o próprio corpo, com sua sexualidade, uma vez que eram  vítimas de um existir pautado no machismo cruel e aviltante que imperava na época.
Todas oriundas de um universo rural, mundo este essencialmente masculino, onde ser mulher e experienciar a plenitude sexual era e ainda é um crime imperdoável.
            Até que ponto Blanches e Júlias e Noivas não existem mais? Até que ponto a mulher contemporânea tem os seus direitos respeitados  e será mesmo que o discurso de defesa do direito da mulher não mais se faz necessário?
De lá para cá, parece-me que as coisas não mudaram tanto assim. Vivemos em um mundo onde os valores preservados são beleza, saúde e juventude. O que era para ser liberdade virou escravidão disfarçada, camuflada, endossada e passível de escambo,  virou mercadoria barata. A mulher continua “coisificada”: coisificada no mercado de trabalho, no seu serviço, quando não cede a eventuais assédios, coisificada quando exerce a mesma função que o homem e recebe menos por isso, coisificada quando se recusa a fazer parte da grande leva de bajuladores que faz questão de estar sempre “ ao lado do rei” para não perder privilégios e para tanto emite voz mansa e rende “manifestações de apreço ao senhor diretor”, coisificada no seu direito de escolha, coisificada na mídia, coisificada nas bancas e quiosques, coisificada no seu direito de exercer a própria solidão, coisificada quando diz sim, coisificada quando diz não.
Após ter falado de Júlia, da Noiva e de Blanche podemos encerrar este pequeno colóquio com algumas personagens modernas, aquelas que farão parte do universo de quem pretende aventurar-se na difícil, penosa e não menos instigante tarefa de educar: as pequenas Geises, as pequenas meninas frutas, seus universos restritos, seus sonhos, suas ambições e aquilo que o sistema está lhes oferecendo. Bem... Posso falar com toda a propriedade: O que era oferecido nas bancas e quiosques que permearam minha meninice? Notícias de revistas muito mais coloridas, bonitas e bem mais baratas do que um livro. E eu pergunto: você que está me lendo, já leu James Joyce, Herman Melville,  Dante Alighiere, José Saramago, Fedor Dostoiévski, Monteiro Lobato? Bem... Talvez não tenhamos lido  Madame Bovary de Gustave Flaubert, O Primo Basílio de Eça de Queirós e, imperdoavelmente, é possível que desconheçamos O segundo Sexo de Simone de Beauvoir e talvez não tenhamos ouvido falar na não menos compreensível rebeldia da primeira esposa de Adão. Bem... se não fosse o ateísmo algo tão forte na minha constituição diria que talvez  Lilith e Lúcifer tenham sido anjos incompreendidos que questionaram o machismo e o autoritarismo de deus, respectivamente.
 Então vamos começar por algo menos filosófico e mais presente nas nossas vidas?  Tenho certeza que você já leu algo semelhante em algum lugar... Ou pelo menos parte de uma barata revista feminina, incitando o culto ao corpo como fonte de sucesso e satisfação dos desejos... Femininos ou masculinos?
Agora com apenas R$1, 49  a grande maioria das feiosas, gorduchas e sonhadoras podem, pelo menos, conhecer a vida maravilhosa e glamorosa das mulheres das capas de revistas e o que essas mulheres  fazem para ficarem turbinadas e gostosas, mas é necessário salientar que beleza implica demandas como acessórios chiques a partir de R$ 5,90. Depois de ficarem gostosas poderão ler a sessão que conta as 8 posições que os homens mais gostam na cama, afinal o macho predador da espécie humana evoluiu, ele não quer somente a beleza vendida na capa da revista, é preciso mais, é preciso conteúdo, inteligência, uma inteligência sexual, é claro, fartas doses de criatividade, não basta “papai-mamãe”, “69”, “y duplo”, “canguru perneta”, “sexo anal, oral. vaginal e transversal”, “cachorrinha”, “cavalinho”, “escorregador”, “tobogã” ... é preciso mais, é preciso “chicote, algema e cinta-liga”, a mulher moderna tem de  ser carinhosa, violenta e independente, preparada física e emocionalmente, afinal vivemos em uma sociedade em que os valores preservados são beleza, saúde e juventude. E, vamos combinar, é muito fácil ser bonita... é só comprar a revista e seguir direitinho tudo o que ela ensina: 11 pílulas que turbinam a beleza, que acabam com celulite, espinhas, manchas e flacidez, como perder 5kg em 10 dias, como eliminar a fome e a barriga, o iogurte mágico com lactobacilos vivos, a granola e barrinhas de cereal.
Depois de ler a revista, como Blanche, senti falta de acreditar em magia. Seria tão mais simples se eu fosse ao banheiro, ficasse nua  e olhasse para a minha barriga e gritasse: sai barriga, “este corpo não te pertence...”  Sonho, apenas sonho e estou longe de me chamar Calderon. Decididamente... A vida não é sonho... Para a grande maioria é um pesadelo com o qual já se acostumou.
Comecei a me sentir a mulher mais rica do mundo quando meu pai comprou um chuveiro ( frio ) e uma televisão... Eu era menina ( e isso não faz muito tempo). É incrível como o tempo custa a passar para pessoas alegres, simpáticas, extrovertidas, “modestas”, e queridas ( como eu), que fazem de suas tragédias pessoais uma ponte para a grande comédia do autoconhecimento)... Onde parei mesmo? Ah... Quando menina eu assistia  ao programa PLANETAS DOS HOMENS,  que todos conhecem,  porque, insisto, não faz tanto tempo assim...  Então, havia uma imagem que nunca me saiu da memória: um macaco descascando uma banana e, de dentro, saía uma linda mulher e tudo que eu mais desejava era ser a mulher que saía de dentro da casca da banana. Eu buscava em todas as revistas mecanismos que me tornassem bela como a moça que saia de dentro da casca banana. Era a nossa primeira televisão... A televisão era a maneira que aquela menina (que , insisto, sou eu... ) encontrava de sonhar com um mundo diferente onde não figurassem tantos exemplos que  não queria que fizessem parte do seu universo. As coisas se confundiam na minha infeliz cabecinha: ora eu queria ser religiosa para acabar com a pobreza dos que ainda eram mais pobres do que a gente  e ora eu queria ser a moça que saía de dentro da casca da banana.
É preciso que se compreenda  que nossas meninas menos privilegiadas economicamente, ou melhor desprivilegiadas mesmo, não têm muitas escolhas. Suas vidas, seus universos são limitados, estão muito ligados às suas trajetórias e como elas estão se constituindo. As bancas de revistas não enchem os olhos de nossa infância sacrificada com literatura de qualidade e, na falta do que é bom, a necessidade de ser igual aos que são bonitos e bem sucedidos faz com que se adquira algo desnecessário.   Podemos criticar estas meninas? Criticá-las seria estar negando o meu passado. O que é possível  fazer é oferecer-lhes outras possibilidades.
Não sei como, nem por qual razão acabei me distanciando deste mercado de ilusões, mas de algo tenho certeza: ridicularizar quem lê,  não é o melhor caminho.
Como arte-educadores precisamos saber que pequenas Geises, melancias, morangos, melões são pequenas Blanches, Noiva ou Júlias  a serem despertadas por mãos responsáveis, que medeiem, proponham, apresentem novos caminhos, novas possibilidades para que surja uma  nova mulher, consciente de seu valor social e de sua importância, que não se deixe usar, que se faça respeitar, que receba o justo e merecido reconhecimento, na família, no mercado de trabalho, que não esteja abaixo de, nem acima de, mas ao lado de novos homens que se permitam vivenciar o prazer da igualdade.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

BLOGANDO SOBRE O SUBMUNDO

A HISTÓRIA DE UMA PUTA




Na disciplina de Interpretação Teatral I do curso de Teatro-Licenciatura, da UFPEL, ministrada pelo professor Daniel Furtado, coube a mim e ao Lumilan levar ao palco um pequeno fragmento de Navalha na Carne, do autor Plínio Marcos. Eu nunca havia feito papel de prostituta e o Lumilan não sabia o que era exatamente um gigolô. Então expliquei pra ele a diferença entre um gigolô e uma cafetina. Para tanto recorri ao livro Dona Anja de Josué Guimarães( que não adiantou quase nada). Antes de exercitar a personagem na Calçada da Obino da cidade de Pelotas procurei dialogar com uma profissional do ramo que é cunhada da senhora que fazia faxina no meu apartamento. A senhora que fazia faxina no meu apartamento ( que é crente) é casada com um enfermeiro (viciado em crak, ele é conhecido nas bocas de fumo como Zé Pedreiro Enfermeiro). Essa senhora tem um filho da primeira união que foi meu aluno no ano 2000, ele é homossexual, soropositivo com doença em estado adiantado. XXX mora com eles, é uma mulher perturbada pelo passado, seus fantasmas a perseguem diariamente, tem 55 anos, desde os 50 não exerce a profissão. É depressiva, ansiosa, caminha de um lado para o outro, quase não consigo fazer as perguntas. Tenho de ganhar confiança.

Sua história começa em um estilo meio Nélson Rodrigues. Engravidou jovem, logo após este fato o cunhado de XXX desenvolve uma fixação por ela. Um dia chega em seu serviço e diz que veio buscá-la, pois a filhinha estava doente. Ela entra no carro e é levada para um lugar ermo, o cemitério da Boa Vista. Lá é surrada pelo cunhado e obrigada a submeter-se todas as taras do marido de sua irmã. Depois ele informa XXX que contará para a irmã e a mãe como ela “se oferecia para ele”. A mãe e a irmã a colocam para a rua e ela vai parar em um puteiro.

A primeira filha que XXX tem está muito bem encaminhada na vida, casou com um homem trabalhador e é uma “mulher direita”, sente vergonha da mãe e nunca vai visitá-la. A outra é prostituta, amancebada com um traficante ( e orgulha-se disso), viciada em crack, portadora de hiv e , após contrair o vírus, devido a vida desregrada que levava, teve seu último bebê retirado e adotado por outra família. Quem sustenta XXX e os dois netinhos é a filha mais nova, recém saída da adolescência. A menina trabalha em uma farmácia econômica, quer estudar, é linda, saudável, cheia de sonhos. Tem um “velho” que a ajuda. Todo final de mês traz um farto sortimento para a família, preocupa-se com a mãe e os dois sobrinhos “Seboso” e “Orelhudo”



Expliquei para XXX o meu objetivo: compor um personagem e perguntei a se achava que eu conseguiria. Ela disse que não, que eu não servia pra coisa, nesse ramo não se pode ser muito delicadinha e cheia de sentimentos. Até gostei do delicadinha... normalmente me enxergam como rude e tosca. Achei contraditório, pois já havia sido informada que ela sofria de depressão e tinha pânico de banho.

YYY, cafetona do extinto Puteiro da Três de Maio, falecida a pouco, havia ensinado para ela que a puta tinha que “barbarizar” com o cliente, mulher boa e descente eles tinham em casa e vinham ali atrás de outra coisa, muito diferente do que tinham em seus respectivos lares e que elas não eram boas nem descentes, não estavam ali para se apaixonar.

Contou-me coisas bizarras que, ao longo de meus 44 anos, estavam para mim no plano da Literatura, afinal, meus relacionamentos sempre foram com homens românticos, delicados... ou mentirosos... vai saber... a maioria teve a delicadeza de morrer antes de me decepcionar. Não vomitei porque não sou muito enjoada, mas confesso que algumas práticas escatológicas até então não eram alvo de minhas fantasias, talvez eu até mude, mas não por agora. Um dos clientes pedia que as moças tomassem purgante para “cagar” na boca dele, o outro só gozava se a moça “mijasse” em um copo. O mais engraçado dos clientes tive a oportunidade de conhecer. Ele mora, atualmente, na frente da casa de XXX. A tara dele era ir para o quarto com três ou quatro moças e UM ESPANADOR DE PÓ. Elas tinham de enfiar o cabo do espanador no ânus dele e ele recitava: “glu glu... eu sou o teu peru” e quem risse apanhava. A primeira vez XXX riu e disse que levou “ uma mão de pau”, uma surra, mas que não se arrepende, pois era uma cena muito engraçada. Outra figura peculiar era conhecido No PUTEIRO DA YYY como “Seu Quequinha, “ prefeito de uma cidade vizinha, por isso não devo citar o nome. Ele só trepava com moças de 18 anos, mas somente depois de elas haverem transado com três homens e tinham de chegar nele sem banho, para que as chupasse com os restos de porra dos outros machos ( por isso era conhecido como seu Quequinha... chupador de Queca).

XXX conta que “quanto mais rico, mais porco.” Diz que o puteiro era frequentado até por médicos e que “ tinham em casa lindas mulheres. Pobre quer apenas trepar mesmo, agora rico fica inventando moda”. A maioria não gosta de usar camisinha, não gostam de comer cu com vaselina, alguns querem que a mulher sinta ou simule dor.

Perguntei para XXX se ela já tinha amado um cliente. Ela disse que sim e que era igual ao Vado, personagem que seria o meu cafetão no trabalho proposto pelo professor Furtado. Contou que ele batia e tomava o dinheiro dela, mas que existe uma coisa chamada amor ( disse isso ironizando). O “Frida” era o seu cafetão, marginal, traficante, foi assassinado e XXX desde então não mais se envolveu emocionalmente com seus clientes.

Perguntei qual o segredo para se ter, aos 55 anos, homens que ainda a param na rua, no supermercado, na farmácia, querendo algo com ela ( e isso eu vi... ninguém me contou) . Respondeu que “eles gostam do cheiro de rabo”, que “mulher tem de deixar cheiro pra chamar”, que “não se pode ter nojo nem sentimento de apego”.

XXX mostrou-se alegre pela primeira vez quando aventei a possibilidade de ela assistir o nosso trabalho, era uma felicidade triste e singela, uma felicidade entre dentes mal cuidados, podres, amarelados, de gente que ri do próprio fadário e seguimos a prosa falando de outras coisas. Ela não foi na apresentação, estava em pânico, com medo de tomar banho. Mandou a cunhada ( que é crente) e a filha ( que sustenta a família). Apresentei-as para o professor Furtado. Elas se sentiram felizes com a minha atitude. Perguntaram se eu não me envergonhava de andar com elas. Disse que não, que respeitava muito a profissão de uma puta, disse que uma puta é uma profissional que é capaz de realizar muitas coisas: fantasias, alegrias e que muitas vezes elas até “salvavam” alguns casamentos e que eu tinha tido muita sorte em ter aprendido com elas. Alguns dias depois fui visitar XXX e levei um presente como forma de agradecimento. Ela prometeu que iria na próxima apresentação, pra ver se eu “tinha jeito pra ser puta”.

O professor Daniel fez uma avaliação justa. Coloquei ações muito interessantes na cena, mas em momentos inadequados, era muita informação para pouco tempo, mesmo assim foi um princípio que pode ser explorado com mais acuidade. Se bem que... eu achei fraco diante da gama de informações que colhi para fazer o trabalho de interpretaçãoII. A pesquisa foi bem mais forte para mim.

Nós aqui em Pelotas trabalhávamos instintivamente, intuitivamente, mas podemos melhorar com o embasamento que estamos recebendo, porém não dá para se contentar só com o que temos no curso, é preciso buscar mais.

Pretendo continuar explorando e investigando o submundo. Não chegamos a precisar dos elementos aprendidos no “um e noventa e nove”. Esse é o mais triste e sórdido tipo de prostituição, é nojento, revoltante. As putas ficam em uma posição de “ exame ginecológico”, mas com o corpo coberto da região do umbigo até a cabeça, o rosto não aparece, fica só a genitália aparecendo e do lado de fora do barraco se forma uma fila ( eles entram, metem e saem, usam camisinha se querem e se não querem não usam, pagam uma “merreca”, os trocados, acredito que devam usados para comprar droga).

Confesso que, para o rumo que pretendo dar para a minha vida ainda preciso aprender muito mais. Não adianta usar o submundo como trampolim para angariar uma boa nota. É preciso metas mais claras e objetivas. Não posso me contentar com o conhecer.

Hoje é domingo, Está chovendo e eu sinto uma puta , uma puta tristeza dentro de mim, uma tristeza de viver em um mundo onde as metáforas do limpo e do sujo se confundem e me sinto como a égua velha do livro A Revolução dos Bichos. Não ando enxergando bem... não consigo mais distinguir quem é o homem e quem é o porco. OS PORCOS SÃO PROTEGIDOS E ESTÃO TOMANDO O PODER.

domingo, 12 de dezembro de 2010

A CANTORA CARECA: A GRANDE METÁFORA DA CONDIÇÃO MISERÁVEL DO SER HUMANO
Não é absurdo uma cantora careca, Cantoras não precisam de tranças... precisam de voz... o absurdo é a voz que permite a purgação dos absurdos.




Se levarmos em consideração que uma das características do Teatro do Absurdo, estética que se constitui de elementos de um período diferenciado, permeado de situações no pós-guerra, onde há uma total falta de perspectivas, respostas e expectativas, onde o ser humano se percebe e toma consciência de sua condição humana de ser misérrimo, é compreensível a criação de uma arte onde o acontecimento de situações inusitadas, ilógicas, como acontece já nas primeiras páginas da obra A CANTORA CARECA de Èugene Ionesco, adquira um espaço.

Na primeira cena há uma conversa absurda entre o senhor e a senhora Smith. De todos os absurdos o que chama atenção é o fato de eles dizerem que comem bem devido ao sobrenome que têm. Ora, se pararmos para refletir, talvez não seja tão absurdo assim, pois, muitas vezes o sobrenome carrega o status financeiro do indivíduo.

Nesta realidade distorcida, as situações são apresentadas de forma inusitada, ilógica e irreal, mas, se forem analisadas de forma mais meticulosa e aprofundada pode-se perceber que possibilitam diversas e instigantes leituras que sugerem indagações que são latentes e pontuais no cotidiano das pessoas.

Nesta cena é representada a vivência de um casal fútil, que fala de coisas fúteis, possuem uma vida fútil, preocupações fúteis e, por que não dizer, relacionamentos fúteis.

Quando Ionesco aborda a família Bobby Watson, talvez queira chamar a atenção para a “mesmice” da instituição familiar, com seu modelo padronizado que parece estar invalidado para o determinado contexto no qual está inserido.

Dentro da linguagem do absurdo a personalidade dos filhos apresenta-se de forma repetitiva e de como eles são observados pelos pais, as parecenças, conforme seus vícios e virtudes.

A questão do relógio pode revelar uma desordem no tempo. Às vezes mais rápido, outras vezes mais demorado. Por um momento pesado, assustador. Afinal, o que é o tempo, senão a sensação de infinitude ou ligeireza dos acontecimentos e a correlação desta brevidade ou demora com o prazer ou desprazer do jogo existencial?

Na segunda cena podemos ter uma leitura de que a personagem Mary tem uma libido bastante “movimentada”, vai ao cinema com um homem e vê um filme com mulheres. Provavelmente a aguardente serviu para regar a companhia masculina e o leite a feminina, levando-se em consideração que estes símbolos, da maneira que são projetados, podem sugerir tal interpretação. Posteriormente, o fato de Mary comprar um penico também pode ser lido, interpretado como o que ela sente em relação aos patrões e, talvez, o que gostaria de dizer a eles, já que ela pode simbolizar uma classe oprimida.

A quarta cena talvez reflita acerca da grande metáfora da hipocrisia de casais que vivem juntos, mas que não se conhecem, ou que deixaram de se conhecer, ou que não mais se reconhecem. É como se fossem estranhos: tratam-se por “meu senhor”, “minha Senhora”. Elizabeth e Donald, com o passar do tempo, podem ter se distanciado e, de repente, o tempo passa ( a batida forte do relógio, citada na página 50 não serve somente para que os espectadores se sobressaltem, mas para que o casal “acorde” e tente resgatar o tempo perdido).

O discurso de Mary na quinta cena oferece a possibilidade para que tenha uma leitura sobre a postura dos pais depois da chegada dos filhos, ou seja, quando a família vai agregando novos membros ( os filhos ), os pais já não são mais os mesmos, a relação não é mais a mesma, o olhar em relação aos novos membros não é o mesmo. Cada um observa os filhos sob o próprio prisma. É inútil pensar que com a chegada de novos membros as coisas continuarão como estão. Donald não enxergará mais Elizabeth do mesmo jeito e Elizabeth não enxergará mais Donald da mesma forma. Eles se modificam e adquirem novas características, mas talvez não tenham feito alguns ajustes para que a situação homem e mulher, macho e fêmea não se tenha abalado. Como não sabem administrar tal situação acabam se distanciando.

Mary se autodenomina Sherlokholmes. Ao mesmo tempo que representa uma classe oprimida, é também uma espécie de consciência, de alguém ou alguma coisa que tende a fazer Elizabeth e Donald se olharem e descobrirem que não sabem quem são.

O relógio é uma constante nas cenas, ou seja, não importa o tempo que passou, o que aconteceu, o que não aconteceu, o que poderia ter acontecido e o que poderia não ter acontecido, eles sempre podem recomeçar, tudo parece cíclico, circular.

Ionesco, através da cena sete, ironiza as regras de etiqueta, a elegância, os bons modos e todas as manifestações de apreço que são rendidos a quem talvez não esteja nem interessado na alheia existência. O senhor e a senhora Smith entram com a mesma roupa e alegam para os Martim que os esperavam com ansiedade, pois até colocaram roupas de gala.

Ainda na mesma cena, versa sobre os conceitos que são abrangentes e flexíveis e que nem tudo o que parece é, ou seja, “nem sempre quando toca a campainha significa que há alguém para entrar na nossa casa” e que às vezes há alguém querendo entrar na nossa casa, na nossa vida e que, apesar da campainha, não ouvimos estas pessoas.

Observa-se também que a vida é cheia de surpresas: “ a experiência nos ensina que quando a gente ouve a campainha tocar é porque não tem ninguém”. Há que se tomar cuidado com a campainha de nossa casa, porque ela pode tocar e ser nada mais, nada menos do que NINGUÉM e podemos correr o risco de permitir que NINGUÉM entre no nosso lar, farte-se da nossa comida, do nosso vinho, da nossa alma, banhe-se da nossa água, cubra-se com nosso manto e acabe se revelando como NINGUÉM.

O Teatro do Absurdo é uma possibilidade de dizer as verdades de forma distorcida chamando a atenção para o que realmente está deformado. É preciso que crie bolinhas no nosso blusão mais bonito para que a gente perceba que a linha não era de boa qualidade. Ionesco era bom nisso...



“É quase impossível suprimir em uma lauda o tanto de não- absurdo que o absurdo pode comportar e a cantora careca todos os dias vai mudando o seu penteado toda feliz e faceira porque carecas cabeludos jamais pegam piolhos.”

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

BLOGANDO SOBRE O FERIADÃO NA CASA DA FAMÍLIA TRAPO

ARMADILHAS DA LINGUAGEM

Feriadäo…sem paciência para ler, resolvi fazer algo mais engraçado: visitar minha família, um dos poucos lugares onde se vê graça nas pequenas coisas. Meu sobrinho, Alison, ao contrário de mim, é extremamente educado, gentil e generoso. Sempre chega com um beijo e não me chama de tia. Desde pequeno foi sabedor de que em mim teria, antes da tia, uma grande e fiel amiga. Somos confidentes, parceiros de bicicletadas, churrascadas, fugas de moto (pois foi com ele que aprendi a andar em cavalo de motor), comilanças de madrugada, pequenos furtos (guloseimas para os netos mais novos não é bem um furto: é zelo pela saúde da geração vindoura) e muitos segredos.
Mas o Alison tem um defeito: o calcanhar de Aquiles dele é a linguagem. Nunca encontrei alguém que tivesse o dom de ser traído pela própria língua. Quando pequeno, lá pelos quatro anos de idade, se ele fazia alguma estrepolia, eu que só reservo a pedagogia aos alunos, saía correndo atrás dele dizendo que ia arrancar seu o “peruzinho”. O garoto fugia em uma corrida desabalada e eu fingia que não conseguia alcançá-lo. Natal. A mãe disse: hoje eu vou assar e rechear o peru mais cedo, para ter tempo de assistir a missa e pegou o Alison no colo e ele berrava: o meu não vovó, pega o do vovô que é maior.
Pensei que o moleque, depois de adulto, já tivesse aprendido a interpretar e articular frases com clareza, mas vejo que me enganei. Depois de comermos muito, que é algo que se faz bastante quando visitamos a matriarca, resolvemos apreciar um filme. Nem bem havia começado, faltou luz. A mãe estava no banheiro e ele, com todo o seu peculiar cavalheirismo, correu para o banheiro...VÓ, TE LIMPA COM A LANTERNA...

(Histórias bobas... sim, mas são as minhas histórias...)